Introdução
Saudações aos leitores. Para o artigo deste mês que se encerra, decidi escolher um tema um pouco mais complexo que o habitual, uma vez que o assunto tratado exigiu um conhecimento diferente daquele utilizado normalmente para a redação de outros artigos. Aqui buscarei dissertar sobre questões referentes à lei, um texto legal em particular, o PLS 170/2006, de autoria do senador Valdir Raupp (PMDB-RO), que pretende emendar a lei 7716/89, tornando crime a fabricação, importação, distribuição, manutenção em depósito e comercialização de jogos ofensivos aos costumes, às tradições dos povos, aos seus cultos, credos, religiões e símbolos.
O projeto de lei
O PLS 170/2006, de autoria do senador Valdir Raupp (PMDB-RO) consiste em uma proposta de emenda à lei 7716/89, alterando o art. 20, incluindo no rol de crimes previstos deste "fabricar, importar, distribuir, manter em depósito ou comercializar jogos de videogames ofensivos aos costumes, às tradições dos povos, aos seus cultos, credos, religiões e símbolos", prevendo penas de reclusão de um a três anos e multa, havendo também a previsão de um agravante, com o cometimento do crime através de meios de comunicação social de qualquer natureza, aumentando a pena de reclusão de dois a cinco anos.
Atualmente o projeto de lei está na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado; aqui tem um link que leva à página "Atividade Legislativa" do Senado Federal, por onde é possível ler o projeto de lei e suas justificativas na íntegra, assim como acompanhar a tramitação do PLS 170/2006 (http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=77940).
Questionamentos
Após ler tanto o projeto de lei quanto suas justificativas, me vieram à mente alguns questionamentos, tanto de ordem legal quanto referentes à aplicabilidade da lei em questão. Para melhor compreensão do tema, decidi distinguir ambos os questionamentos, dissertando separadamente sobre os mesmos.
1) Questionamentos quanto à eficácia e aplicabilidade da lei
Alguns questionamentos relativos ao projeto de lei, como dito anteriormente, são referentes à aplicabilidade e eficácia do mesmo; caso venha a ser aprovado, qual será a eficácia da lei, uma vez que o mercado brasileiro de jogos de videogame é majoritariamente informal, com parcela significativa das vendas de jogos de videogames entregues à pirataria? A aplicabilidade da lei em tela atingiria somente o mercado formal, retirando de circulação somente as cópias originais dos games proibidos, não atingindo o mercado informal, que consiste não apenas nas cópias piratas comercializadas em qualquer cidade, mas também no jogador que baixa o jogo da internet.
Na prática, a circulação - considerando o uso da palavra "circulação" em um sentido mais amplo, englobando tanto o mercado formal quanto o informal - dos jogos enquadrados na lei como ofensivos não seria prejudicada de forma contundente, pois a lei atingiria somente o mercado formal, enquanto cópias piratas do mesmo jogo continuariam disponíveis no comércio paralelo e na internet, ao alcance de qualquer pessoa.
2) Questões de ordem legal
Com relação às questões de ordem legal, elas podem ser divididas em dois pontos: o primeiro, relacionado com um aspecto constitucional e o segundo, referente à matéria penal, uma vez que o projeto de lei visa criminalizar uma conduta.
Do ponto de vista constitucional, são pertinentes os questionamentos quanto à liberdade de expressão, pois o projeto de lei, que busca combater a circulação de jogos considerados ofensivos, não menciona a forma como isso seria feito, dando margem para a instauração de censura prévia, algo vedado pelo nosso ordenamento jurídico, contudo, a liberdade de expressão não é algo absoluto, cabendo a responsabilização, inclusive na esfera penal, posterior decorrente da prática de abusos, como a incitação do preconceito através de meios de comunicação social, algo já previsto em lei, mas que será abordado a seguir; ainda com relação à liberdade de expressão, prevista no inciso IX do art.5º e 220 a 224 da Constituição, Alexandre de Moraes afirma: "O texto constitucional repele frontalmente a possibilidade de censura prévia. Essa previsão, porém, não significa que a liberdade de imprensa é absoluta, não encontrando restrições nos demais direitos fundamentais, pois a responsabilização posterior do autor e/ou responsável pelas notícias injuriosas, difamantes, mentirosas sempre será cabível, em relação a eventuais danos materiais.". A classificação etária de jogos eletrônicos não constitui forma de censura, pois, conforme o art. 220, §3º da Constituição, compete à lei federal regulamentar as diversões e espetáculos públicos, informando a natureza dos mesmos e as faixas etárias a que não se recomendam.
Do ponto de vista penal, alguns questionamentos referentes a princípios de Direito Penal são válidos e pertinentes, como a delimitação dos objetos tutelados pela lei, sendo visível a excessiva indeterminação de alguns conceitos, como "ofensivos aos costumes ou às tradições dos povos"; essa indeterminação de conceitos previstos em norma incriminadora é temerária, pois pode gerar insegurança jurídica, referente a isso o princípio da taxatividade, que é um desdobramento do princípio da legalidade, afirma que as normas penais devem, de acordo com Guilherme de Souza Nucci "ser suficientemente claras e bem elaboradas, de modo a não deixar dúvida por parte do destinatário da norma", ainda sobre o princípio da taxatividade, Luiz Regis Prado afirma que a lei penal deve ser não apenas elaborada pelo legislador de forma clara, proibindo-se o uso excessivo de conceitos indeterminados ou vagos na construção de tipos penais, como também aplicada pelo julgador dentro de limites estritos estabelecidos pelo texto legal. Outro ponto relevante, ainda com relação à norma incriminadora é referente àquilo que poderia ser considerado ofensivo, pois não há parâmetro algum nesse aspecto, um exemplo de jogo que poderia ser enquadrado por essa lei, caso venha a ser aprovada, é Call of Duty: Modern Warfare 2, que tem como cenário de uma missão uma favela no Rio de Janeiro. Com relação ao combate ao preconceito, a lei 7716/89, que trata dos crimes resultantes de preconceito de raça e cor, em seu art. 20, §2º, já prevê pena quando os crimes previstos no caput (o primeiro trecho do artigo) do artigo são cometidos através de meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, o que torna a própria utilidade do projeto de lei em discussão algo questionável, pois os videogames podem ser considerados um meio de comunicação social, estando dentro daquilo que já é previsto por lei.
Conclusão
Com esse artigo busquei discorrer um pouco sobre o PLS 170/2006, mas também fazer uma crítica ao referido projeto de lei, apontando falhas do mesmo em diversos aspectos; busquei escrever esse artigo pensando não apenas na argumentação, mas também na forma como esta seria apresentada, pois a quantidade de termos técnicos da área jurídica pode ser de difícil compreensão para um leitor que não é da área, por isso me preocupei em detalhar os termos, expressões e conceitos apresentados. Quanto ao destino desse projeto de lei, espero que os senadores dêem a ele a destinação adequada, que é não o aprovando.
Referências
Constituição Federal http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p.52.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral : parte especial. 3. ed. rev. atual. e ampl. 2. tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 72.
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral, arts. 1º a 120. 9. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 143.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p. 252-254.
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